ARTIGOS


A HISTÓRIA NÃO É A AVENIDA NEVSKY

(Apresentação da obra de V.A. Vazyulin)  

 

“O mais alto nível de crítica aos adversários

é a resolução positiva do problema em si”

V.A. Vazyulin

  

A diferença, apontada por Tchernichevsky [1], entre a rectilínea avenida Nevsky, que, com os seus 4 km e meio, atravessa o coração de Leninegrado e o complexo devir histórico da humanidade legitima a exigência de uma apreensão teorética do real que não se compadeça, nem com a rudimentar aplicação de esquemas, nem com o encantamento face ao imediato e ao circunstancial. Só a captação e reconstituição da efectividade permitem ver, para além do superficial, o movimento imanente que, não raramente, se desdobra exteriormente num sentido aparentemente inverso ao real. A história mundial é sinuosa, plena de voltas e contravoltas, recuos e avanços. Mas é nessa contraditória, irregular, assíncrona trajectória, como que aleatória, que se articula e desdobra a lógica da história.

A realidade hodierna aparece como uma inversão do movimento efectivo da história. A União Soviética, e quase todos os antigos países socialistas, voltaram ao capitalismo. A ordem burguesa adquiriu status de modo natural de vida, foi proclamado o fim da história. A luta de classes passou a ser vista como uma coisa do passado e os choques entre civilizações são hoje apresentados como o núcleo das contradições do "mundo globalizado". Marx, tal como acontecera com Spinoza e Hegel, é agora visto por muitos como um "cão morto". Os movimentos sociais actuam predominantemente de modo retroactivo, apenas resistindo ao impetuoso avanço do capital, sem clareza quanto ao rumo a seguir. Cepticismo, insegurança e até mesmo auto-fobia tomaram posse de muitas pessoas progressistas. Nem mesmo a actual crise do capitalismo levou à superação desta desorientação. No entanto, por paradoxal que pareça, o marxismo pode repetir a resposta de Mark Twain à publicação de seu obituário no New York Journal: "Os rumores da minha morte foram muito exagerados".

Nós vivemos numa época de recuo, em que a toupeira da história sedimenta forças colossais para mais um salto em frente. Esses reveses históricos não são novos. A absolutização conjuntural do momento histórico bloqueia uma percepção mais ampla do processo em curso, mas, na verdade, nenhuma nova formação económico-social foi estabelecida sem estes reveses temporários.

Nesta época de temporário retrocesso, importa não apenas manter posições a nível político e social, a defesa intransigente das conquistas alcançadas, a força de espírito e as convicções, mas também reflectir sobre o percurso percorrido e preparar teoricamente o tempo vindouro, em que todas as nossas forças serão, mais uma vez, colocadas à prova. Nestas fases da história, importa ter presente que apenas a preparação teórica permite a resolução positiva de tarefas históricas incomparavelmente muito mais complexas do que em qualquer período passado. Nunca, na história, a teoria teve um papel tão importante como agora.

A sociedade em que vivemos, a sociedade burguesa, foi pela primeira vez investigada enquanto totalidade dialéctica concreta, enquanto totalidade social orgânica [2], por Karl Marx que, na sua obra magna, “O Capital”, procedeu ao estudo sistemático e à reconstituição teórica do capitalismo, demonstrando o seu funcionamento e o seu carácter transitório.

A Economia Política burguesa, não podendo continuar o movimento cognoscitivo até ao desvelamento da essência da sociedade burguesa (e a consequente revelação do seu carácter historicamente limitado), conclui o seu movimento ascendente e converte-se definitivamente em economia política vulgar, passando a tratar fundamentalmente (e ao nível do mero entendimento), de esferas mais afastadas da essência da sociedade burguesa (mercado, preços, marketing, taxas, movimentos das bolsas, política económica, etc.). A economia política derivou em Economics. Esta desistência gnosiológica atesta a asserção de que, a partir do aparecimento do marxismo clássico, a relação de toda e qualquer investigação da esfera da produção ou da sociedade como um todo, tem, na sua relação para com o marxismo, o seu critério de cientificidade.

O marxismo, porém, não foi sempre encarado como uma teoria em desenvolvimento. Após Marx, apesar do crescimento do movimento revolucionário, a maioria dos marxistas viu o marxismo como uma teoria estanque, a ser apenas aprendida e seguida, sem reflexão autónoma. Lenin será, a contrapelo desta tendência, o expoente máximo do desenvolvimento do marxismo pela linha magistral. A sua actividade vai decorrer (e não por acaso) num novo período histórico, na fase imperialista do capitalismo, na época das revoluções proletárias e do surgimento do socialismo. Lenin compreendeu que para o desenvolvimento do marxismo é necessária a compreensão da sua metodologia, para o que aponta o estudo de Hegel e o conhecido aforismo segundo o qual “não é possível compreender plenamente o “Capital” de Marx e particularmente o seu primeiro capítulo sem ter estudado a fundo e sem ter compreendido toda a lógica de Hegel. Por conseguinte, ½ século depois nenhum marxista compreendeu Marx!!” [3]. A revolução de 1917[4], pela sua dimensão, verdadeiramente titânica, e as inúmeras dificuldades inerentes às tarefas revolucionárias e à construção do socialismo, a par da curta vida de Lenin, não lhe permitiram levar a cabo, de modo ainda mais profundo, o desenvolvimento do método marxista.

Durante o período de transformação revolucionária, vão ser ensaiadas algumas tentativas. A. M. Deborin vai, seguindo a exortação de Lenin, tentar delinear a ligação entre as posições marxistas e a filosofia hegeliana. Mas o contexto histórico, a par de outras circunstâncias, tanto de carácter objectivo como subjectivo, não possibilitaram ir além de uma análise escolástica e abstracta de Hegel. A especificidade de Marx era vista fundamentalmente em termos analógicos, por contraposição, como diferença em relação a Hegel e à concepção idealista em geral. Não era possível, neste embasamento epistemológico, criticar positivamente Hegel.

Dos anos 30 aos anos 50, as tarefas de construção do socialismo, permanentemente ameaçado e construído numa base material ainda não adequada, vão levar a uma (praticamente inevitável) hipostasia do controle político sobre a teoria. As tarefas de propaganda e agitação tomaram a supremacia em relação ao aprofundamento teórico-metodológico, tornando quase impossível as investigações fundamentais. O requerido avanço teórico, imprescindível ao delinear estratégico dos contornos da nova sociedade, ressentiram-se dessa circunstância.

Embora a prática de construção do socialismo (novas tarefas, novos fenómenos a serem avaliados, a experiência histórica, o fomento cultural, etc.) impulsionasse o incremento teórico em geral, formando quadros, fornecendo material e tornando necessária a sua apreciação, as circunstâncias concretas levaram a uma, praticamente inevitável, colagem entre a economia política e a política económica, colagem entre a teoria política e a política, colagem entre a filosofia social e a necessidade de justificação teórica das transformações sociais levadas a cabo. A teoria funde-se com a prática, não revela a sua especificidade. Isto era, em certa medida, uma situação historicamente necessária, mas que não permitia o avanço teórico. O estudo das bases metodológicas do marxismo exige um elevado nível de criticidade e reflexão da teoria sobre si mesma.

Na passagem dos anos cinquenta aos anos sessenta, as condições objectivas, relacionadas com os limites do avanço predominantemente extensivo da economia socialista, colocaram a necessidade de uma nova posição em relação às relações de produção e ao nível superestrutural em geral. Concomitantemente (e talvez não por mero acaso histórico), verificou-se um afrouxamento do controle sobre a produção intelectual, o que permitiu uma relativa independência da teoria em relação à prática política imediata e a abertura de novas perspectivas teóricas do marxismo.

Uma vez que o marxismo não é um dogma, o estudo da sua base metodológica é essencial. O desenvolvimento teórico do marxismo está intrinsecamente ligado às investigações acerca do método marxiano, consubstanciado em “O Capital”, o método de ascensão do abstracto ao concreto. Marx expôs, sucintamente este método na introdução à obra “Para a crítica da economia política”: “Parece correcto começar pelo real e o concreto, pelo que se supõe efectivo; (…). Contudo, a um exame mais atento, tal revela-se falso. (…) Se começássemos simplesmente [pelo concreto sensível] (…), teríamos uma visão caótica do conjunto. Por uma análise cada vez mais precisa, chegaríamos a representações cada vez mais simples; do concreto inicialmente representado passaríamos a abstracções progressivamente mais subtis até alcançarmos as determinações mais simples. Aqui chegados, teríamos que empreender a viagem de regresso até [ao concreto, porém] (…) desta vez não teríamos uma ideia caótica de todo, mas uma rica totalidade com múltiplas determinações e relações. (…) Eis, manifestamente, o método científico correcto. O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações e, por isso, é a unidade do diverso. Aparece no pensamento como processo de síntese, como resultado, e não como ponto de partida, embora seja o verdadeiro ponto de partida, e, portanto, também, o ponto de partida da intuição e da representação. No primeiro caso, a representação plena é volatilizada numa determinação abstracta; no segundo caso, as determinações abstractas conduzem à reprodução do concreto pela via do pensamento” [5].

O estudo metodológico sistemático da obra maior de Marx desencadeia-se com os trabalhos de M.M. Rosental, E.V. Ilienkov, V.N. Tipukhin, L.A. Mankovsky, Z.M. Orudjev. Inicia-se uma nova abordagem do marxismo, e do legado de Hegel, em que coexistiam já, embora separadas e em instável equilíbrio, as críticas negativa e positiva de Hegel.

Hegel, na sua crítica ao agnosticismo kantiano, à separação entre o fenómeno e a coisa em si (com consequências funestas para a relação entre o ser e dever ser), vai tentar abarcar toda a realidade natural, social e o pensamento num sistema, que não era um simples agregado ecléctico e de conhecimentos, como outros sistemas idealistas, mas um sistema intrínseca e dialecticamente ligado [6]. Hegel resolveu a tarefa a que se propôs em bases idealistas, vendo a realidade objectiva como resultado do auto-movimento do pensamento. O pensamento, por sua vez, não é visto como reflexo da realidade objectiva, como apreensão de um objecto concreto e determinado[7]. No entanto, como salientou Marx, no Posfácio à Segunda Edição Alemã (1872) do Primeiro Volume de «O Capital», “A mistificação que a dialéctica sofre às mãos de Hegel de modo nenhum impede que tenha sido ele a expor, pela primeira vez, de um modo abrangente e consciente as suas formas de movimento universais” [8].

A contradição, salientada por Engels e Lenin entre o sistema e o método hegelianos pode levar, se não for devidamente compreendida, a conclusões superficiais e erróneas: 1) a de que no sistema hegeliano nada é importante; 2) a de que a estrutura dinâmica e sequencial da lógica hegeliana, a sequencialidade que levaria, se referirmos apenas os pontos nodais, do ser à essência, e desta ao fenómeno e à efectividade, seriam um mero arcabouço sistémico do método. Este resumir-se-ia (após um procedimento antisséptico, tendente à expurgação dos momentos idealistas) a uma utilização pontual de determinadas categorias e leis dialécticas. Embora haja uma contradição entre o método e o sistema hegeliano, é de salientar que tanto a genialidade como a debilidade idealista de Hegel permeiam todo o sistema e toda a lógica. Em relação ao sistema, há que precisar que o problema do sistema hegeliano não se prende com o facto de ser um sistema, mas com o facto de ser uma concepção idealista de sistema, considerado absoluto, fechado em si mesmo; o mesmo problema prende-se com a lógica hegeliana, cujo idealismo não permite a Hegel passar da coisa da lógica para a lógica da coisa. Deste ponto de vista, a inter-relação entre método e sistema afigura-se mais complexa, mas só assim a importância de Hegel é revelada de um modo mais profundo e profícuo. A importância da estrutura dinâmica da lógica objectiva de Hegel é frequentemente obnubilada, no entanto, ela guarda uma directa correlação com o método de ascensão do abstracto ao concreto em Marx. Certamente, era fundamentalmente a este aspecto e a esta correlação que se referia Lenin no incitamento supracitado.

A crítica a que se submeteu, no Ocidente, a filosofia hegeliana, e a sua lógica em particular, serviu frequentemente não só e não tanto para criticar as limitações idealistas deste grande filósofo mas, principalmente para criticar a possibilidade de compreensão sistemática da essência dos fenómenos, atacar o determinismo, etc. Para o filisteu, toda e qualquer aproximação teórica sistemática da realidade é identificada com uma visão dogmática, todo e qualquer sistema é identificado com um totalitarismo da razão. No entanto, o problema dos grandes sistemas metafísicos residia mais no seu carácter metafísico do que no seu carácter sistemático. A apropriação meramente parcelar, fragmentária, da realidade, que fez caminho, conduziu à negação da possibilidade do conhecimento da essência dos fenómenos e da concretude real [9].

 

Como foi referido, a compreensão do método marxiano concretizado em “O Capital”, afigurou-se como caminho necessário ao desenvolvimento teórico do marxismo. “O Capital” tem uma importância fulcral em termos metodológicos, uma vez que nele foi efectuada pela primeira vez a ascensão do abstracto ao concreto a partir de uma posição dialéctico-materialista.

Apesar do referido incitamento de Lenin, passaram-se várias décadas sem que tenha sido empreendido o estudo sistemático da metodologia de “O Capital” através da abordagem da obra enquanto totalidade orgânica. As diversas contribuições teóricas, limitaram-se, basicamente, à compilação “sistemática” de referências metodológicas explícitas no corpo desta obra. A utilização de “O Capital” na qualidade de referencial exemplificador de aplicação de categorias ou blocos temáticos para posteriores construções arbitrárias revela, no fundo, uma percepção da lógica dialéctica distinta da marxiana [10].

Procurou-se a presença pontual e exotérica da dialéctica na obra marxiana, quando na realidade, o método marxiano se encontrava na dinâmica esotérica total da obra, estava, por assim dizer, embebido no sangue e carne da obra. Rozental, Tipukhin, Mankovsky, Orudjev e até mesmo Ilienkov, (sem falar de autores estrangeiros da denominada “nova dialéctica”, como R. Rosdolsky, J. Zelený, etc.) não foram além, nos termos metodológicos aqui referidos, da utilização de “O Capital” para exemplificar categorias e sua inter-relação estrutural ou ao estudo isolado de blocos temáticos. Não chegaram, assim, à decifração consequente da estrutura integral da obra. Mesmo os investigadores mais consequentes e incisivos, Ilienkov e Mankovski, apenas se aproximaram dessa percepção do capital enquanto totalidade orgânica, sem, no entanto, a realizarem plenamente.

Tendo por base os trabalhos referidos, acerca da metodologia esotérica de “O Capital”, V.A. Vazyulin [11] vai dar início a uma nova compreensão do marxismo e levar a cabo a aplicação criadora do resultado dessas investigações.

A importância da obra de V.A. Vazyulin, “A lógica de ‘O Capital’ de Karl Marx” (1968) deve-se ao facto de, pela primeira vez ter sido levada a cabo, de modo positivo, sistemático e pleno, a tarefa assinalada por Lenin em 1914. A lógica marxiana é estudada não como soma de afirmações de Marx sobre o seu método. V.A. Vazyulin não se dedica a um “recontar” da obra marxiana nem à tentativa de encontrar em “O Capital” de Marx um arquivo, um repositório, de exemplos de aplicação de categorias dialécticas, nem ao mero estudo de blocos temáticos. A obra referida pretende a compreensão sistemática, metodologicamente consequente, de “O Capital” enquanto totalidade orgânica que procura reproduzir a estrutura e movimento de outra totalidade orgânica, a sociedade capitalista. É consumada uma investigação sistemática e integral da lógica do capital, enquanto totalidade dialéctica de subordinação categorial. As próprias categorias lógicas só se tornam verdadeiramente categorias lógicas quando inseridas no sistema categorial. A tentativa de estudar as categorias isoladamente, ou mesmo construir um sistema de categorias lógicas desligadas de um todo orgânico, é incompatível com a dialéctica materialista [12].

Nesta obra, em que a tónica incide, explicitamente, nos momentos de continuidade entre os métodos de Hegel e o de Marx e não tanto na critica negativa ao idealismo hegeliano, vai ser explanada a inter-relação intrínseca entre o método de Marx e Hegel. Ficou claro que esta inter-relação, assim como o núcleo racional da lógica hegeliana é muito mais profundo do que se poderia supor. Até a estrutura geral da obra de Marx, na sua ascensão do abstracto ao concreto, reproduz (embora de modo específico e com diferenças fundamentais), a estrutura da lógica hegeliana (ser-essência-fenómeno-efectividade e as categorias de transição [13]).

A elucidação da lógica de “O Capital” tornou clara a especificidade do método de Marx em relação ao hegeliano. O alicerce onto-gnosiológico fundante dessa especificidade prende-se com o facto de Marx partir de uma posição dialéctico-materialista e, consequentemente, elaborar a sua lógica na investigação de um objecto concreto, específico, determinado, enquanto Hegel trata da lógica em geral.

Em “O Capital”, Marx vai, no livro primeiro, do ser (Mercadoria e dinheiro), à essência (mais-valia e produção do capital): no livro segundo, apresenta a circulação do capital (fenómeno): no livro terceiro, extremamente incompleto, chega à efectividade do capitalismo (processo de produção capitalista como um todo)[14]. Marx vai do ser (dimensão superficial), da mercadoria (essa “célula”, elemento primordial, relação mais simples, elementar, da sociedade burguesa) para a essência e desta para o fenómeno e efectividade.

O movimento do concreto sensível ao abstracto não é uma contraposição absoluta à ascensão do abstracto ao concreto não é um andaime, retirado após a conclusão da obra. A ascensão não é um caminho unívoco “em sentido inverso”. O movimento do concreto sensível ao abstracto e deste ao concreto enquanto totalidade rica em determinações (e desta à prática) não são vistos como etapas isoladas, mas como uma espiral dupla em que pode predominar o movimento do concreto ao abstracto ou (no caso de Marx) a ascensão do abstracto ao concreto. Nesta, o movimento do concreto sensível ao abstracto não é totalmente eliminado, antes é suprassumido, enquanto momento necessário, subordinado e subsumido, da ascensão do abstracto ao concreto [15]. A absolutização da ascensão do abstracto ao concreto revela uma subestimação do papel constante da experiência para o conhecimento. Se a ascensão se apresentar como única articulação constitutiva do concreto pensado, o papel da prática e dos novos dados fornecidos por essa prática para a correcção continua da reconstituição lógica do objecto são menosprezados [16]. Em todos os momentos da investigação, o objecto deve ser visto enquanto totalidade presente e concreta, ele deve pairar durante todo o processo perante o olhar indagador do investigador.

A dialéctica marxista anunciou-se muito mais complexa do que a hegeliana. Em primeiro lugar, a lógica de Marx é uma espiral dupla, em que o movimento do concreto sensível ao abstracto se mantém na ascensão do abstracto ao concreto. Nesta espiral dupla, podemos encontrar três hélices, uma grande hélice que reflecte o objecto no presente, uma hélice menor que reflecte o passado, enquanto momento subsumido e suprassumido no presente (capítulo da mercadoria e dinheiro) [17] e uma hélice que reflecte as premissas (no objecto dado) da superação ulterior do objecto, uma vez que a apropriação consequente do imanente desvela já os germes do iminente.

Por seu lado, a lógica hegeliana constitui uma espiral única, em que a ascensão do abstracto ao concreto é absolutizado, sendo o movimento do passado ao presente diluído no presente, uma vez é visto, em certa medida, como momento ilusório do verdadeiro processo de conhecimento. Isto fecha o caminho para a compreensão do devir real do objecto e da sua ulterior transformação [18]. O desvendamento da lógica de “O Capital” permite a ultrapassagem dialéctica, não só da posição positivista em relação ao conhecimento, como também da abordagem idealista, de cariz hegeliano, que, de certo modo, marca parte dos trabalhos de marxistas.

Superou-se a ideia de que a ascensão do abstracto ao concreto partiria directamente da essência e de que acabaria no fenómeno. Mesmo Ilienkov considerava que Marx teria começado verdadeiramente a ascensão do abstracto ao concreto apenas a partir do valor (e não da mercadoria). Assim sendo, a ascensão do abstracto ao concreto seria uma ascensão realizada directamente a partir da essência, sem que as suas premissas fossem significativas. Mas se tal ocorrer, a reconstituição do objecto adquire um carácter dogmático e místico, o objecto apresenta-se como desligado das suas premissas e a constituição da sua essência não é demonstrada. Porém, assim como o pensamento não cria o objecto, a sua concretude também não pode ser reconstituída unicamente a partir da essência, sem premissas concretas, premissas essas que se mantêm (embora de modo suprassumido, subordinado) durante toda a existência do objecto. Marx, realmente, tencionava inicialmente, começar a exposição do seu trabalho a partir do dinheiro. Viu porém, que não o poderia fazer, uma vez que a mercadoria era fundamental para o desvendar e a demonstração consequente do mecanismo de constituição do valor, intuiu que o ser está indissoluvelmente ligado, enquanto momento suprassumido e subsumido, à essência [19]. A essência não pode ser, portanto, vista como desligada do ser que a constituiu, embora não deva, outrossim, ser confundida com o ser, confundida com a relação elementar [20].

 

A partir dos resultados obtidos na obra anterior, V.A. Vazyulin vai examinar o mecanismo de  Constituição do método de Investigação Científica de Karl Marx (aspecto lógico)” (1975). Nesta obra, V.A. Vazyulin examina as concepções do jovem Marx, período em que predomina o movimento do concreto sensível ao abstracto. Marx, no seu percurso, vai da crítica da religião à critica da política e desta à critica da economia e à aclaração do carácter determinante desta, ou seja, vai aprofundando a sua compreensão da dinâmica social (ao mesmo tempo que se aprofunda o seu carácter revolucionário).

Marx, no período em exame, ainda se desloca preponderantemente do concreto sensível ao abstracto. Nesta etapa, há como que uma miscigenação e uma inversão de níveis: o que não é essencial é considerado essencial e o que é essencial não é visto como tal. Só em “O Capital”, tanto o objecto, como a ciência e o investigador, se encontram num nível que permite, de um modo praticamente optimal, a aplicação do método da ascensão lógica.

V.A. Vazyulin sublinha a importância de levar em conta, tanto o mecanismo de passagem de um nível de apreensão a outro, como os níveis de desenvolvimento do objecto, da ciência do objecto e do investigador (que podem ser bastante distintos). A correlação destes níveis, marca de forma substancial, todo o processo de investigação. Não se trata, aqui, de apenas “contextualizar” a obra, é imprescindível ter em conta estes movimentos distintos (o nível de desenvolvimento do objecto de estudo, da ciência e do investigador), para compreender a especificidade de cada obra marxiana. Não existe uma filosofia marxiana estanque, dada de uma vez por todas, mas sim um progredir de Marx, que se desenrola pela resolução de contradições internas. Só o destrinçamento destes momentos e níveis permite avaliar cada obra de Marx na sua especificidade histórica, perceber que problemas resolvia em cada obra sua.

O referido trabalho de V.A. Vazyulin permitiu, ainda, perceber o carácter necessário e o estatuto heurístico dos enganos, ilusões, no processo de conhecimento. As insuficiências, os enganos, no movimento consequente do concreto ao abstracto (como ocorre em pessoas geniais, caso de Hegel e Marx) são momentos necessariamente inerentes ao processo de conhecimento e guardam em si as contradições que permitem o avanço ulterior do conhecimento, não podendo ser vistos como simples erros, fadados a um impiedoso e pouco dialéctico “corte epistemológico”. Não se pode ficar apenas com o Marx maduro (inglória e pouco dialéctica tentativa althuseriana), é necessário igualmente compreender o percurso que o levou á obra. Este percurso guarda muito de positivo e ajuda a entender melhor o Marx maduro. Claro que o recurso anti-dialéctico de entender o marxismo tendo por base unicamente no “jovem Marx”, etapa em que predomina o movimento do concreto ao abstracto e não foi descoberta a essência da sociedade capitalista, se situa ainda mais longe do marxismo real.

Em “A constituição do método” V.A. Vazyulin mostra que qualquer totalidade orgânica atravessa necessariamente as etapas de Início, de surgimento do objecto, de formação e maturidade. Na etapa inicial, formam-se as premissas do objecto. Na etapa de surgimento, assiste-se ao aparecer da sua essência. O estádio de formação corresponde à transformação paulatina do seu fundamento pela nova essência. A etapa de maturidade corresponde ao nível em que a essência pode expandir-se numa base adequada e em que se abre a possibilidade da sua transformação radical.

Após a explicitação do mecanismo de constituição do método marxiano, V.A. Vazyulin vai empregar os resultados obtidos como suporte metodológico da teoria sobre a sociedade.

As questões teóricas acerca da metodologia de estudo da sociedade foram, a partir dos anos 50, objecto e campo de intensos debates teóricos na União Soviética. Em 1956, V.J.Kelle e M.Ya. Kovalson fazem uma crítica da abordagem mecanicista do materialismo histórico, e afirmam a necessidade de uma intelecção sistemática do social, dando início ao desencadear de inúmeras discussões acerca dos aspectos teórico metodológicos do estudo da sociedade, que se prolongou pelas décadas de 60 e 70. Nos anos setenta, V.P. Tugarinov, V.P. Rojin propunham uma classificação da estrutura social enquanto momentos justapostos; A.V. Drozov e outros apresentavam uma proposta de sistema integrado, mas sem levar em conta a dinâmica histórica. Muitas obras da época primavam pelo eclectismo, tentando afirmar a compatibilidade extrínseca de teorias e métodos distintos (como em K.Kh.Momdjyan). Mas a noção da insuficiência destas posições era sentida: Yu.K. Pletnikov, V.S. Barulin  vão propor uma abordagem sistémica mas em que o método de ascensão do abstracto ao concreto tivesse a primazia. Foram mesmo afirmadas a necessidade de tratamento do todo social enquanto totalidade orgânica. No entanto, a ausência de uma compreensão metodológica sistemática do marxismo e a inconsequência ideológica levaram vários autores a construções eclécticas, com base na análise sistemico-estrutural, não dialéctica e não propriamente marxista.

Pesem algumas contribuições teóricas positivas, permanecia, de modo geral, uma separação entre o materialismo histórico e o estudo da metodologia marxista. A lógica, a dialéctica e a teoria do conhecimento eram tratados em monografias e manuais de um modo abstracto, separado do estudo integral de qualquer objecto concreto [21].

 

Na obra “A lógica da história” (1088) V.A. Vazyulin vai aplicar os resultados das suas investigações anteriores ao estudo da sociedade enquanto totalidade orgânica. Nesta obra, procura fazer avançar o marxismo pela sua via magistral, pela consequente suprassunção (aufhebung) do marxismo clássico e do materialismo histórico marxiano numa teoria mais ampla [22].

Na tentativa de aplicação do método lógico ao estudo da sociedade futura, ficou claro que o método histórico não deve ser visto como simples complemento ao método lógico e que a supremacia de um deles, depende do nível a que se encontra o objecto de investigação. O método da ascensão do abstracto ao concreto não torna menos relevante a importância heurística da abordagem histórica, não se resumindo este último, à aplicação do que é obtido pelo método de ascensão do abstracto ao concreto. A concepção do objecto enquanto totalidade orgânica pressupõe a unidade (não a identificação) entre as abordagens lógica e histórica. A ascensão do abstracto ao concreto é possível, em pleno sentido, apenas quando o objecto de estudo atinge a sua maturidade. Para um objecto em formação, tem primazia a abordagem histórica. No entanto, uma primeira abordagem lógica da sociedade como um todo já é possível, uma vez que o comunismo já fez a sua entrada em cena na história (na sua fase socialista).

O estudo do marxismo mostrou o caminho a seguir. Ficou claro que o comunismo não poderia ser visto como mera negação do capitalismo, mas de toda a pré-história da humanidade (esta incluiria o capitalismo e todas as formações anteriores). Se o comunismo nega toda a pré-história da humanidade e não apenas o capitalismo, o estudo do socialismo como etapa da sociedade comunista só poderia ter por base o estudo da história da humanidade como um todo. Em Marx, a sociedade comunista era vista predominantemente como a negação do capitalismo (embora Marx, por outro lado, também a visse como superação de toda a pré-história da humanidade) [23].

O desfazer esta ambiguidade tem consequências teóricas e práticas de largo alcance: enquanto negação de toda a pré-história, a edificação da nova sociedade revela-se muito mais complexa, muito mais intricada (e prolongada). A teoria marxiana da sociedade e do comunismo não estava, e nem poderiam estar, no mesmo patamar que a economia política do capitalismo, devido, fundamentalmente ao nível dos objectos em estudo. O materialismo histórico de Marx estava em formação e a teoria do comunismo ainda se encontrava ao nível da constituição das suas premissas. Verificavam-se compreensíveis ambiguidades tanto no que diz respeito às características do comunismo como no que diz respeito à estrutura social. Em relação a este último aspecto, havia compreensível confusão entre a relação elementar da sociedade e a sua essência. O trabalho aparece simultaneamente como início (relação elementar) e essência da sociedade. Mas neste caso, não se percebe o mecanismo de constituição do trabalho enquanto essência da realidade, desaparece a historicidade do trabalho, mistifica-se a essência humana.

A abordagem positiva do comunismo e a distinção entre os níveis do ser e da essência da sociedade permitem compreender de outro modo a estrutura da sociedade. A consideração da relação entre o ser humano e a natureza como a relação elementar, primária, da sociedade permite perceber a sociedade como unidade do social e biológico, superando a dicotomia do reducionismo sociologizante ou biologizante. No que diz respeito propriamente ao marxismo, supera-se o reducionismo sociologizante, que veria a sociedade como desligada das suas premissas naturais. Ora, é exactamente esta relação entre a essência social e as premissas naturais presentes e subsumidas no social que permite compreender a dinâmica dialéctica da história.

Na obra “A lógica da história”, V.A. Vazyulin fez uso dos métodos lógico e histórico. Na abordagem lógica, a sociedade é vista ao nível do ser, da essência, do fenómeno e da efectividade. O nível do ser é o nível da superfície, que só deixa de ser superficial à medida em que se torna momento do desvelamento da essência. Ao nível do ser da sociedade, esta apresenta-se, como um conjunto de indivíduos[24]. Se nos abstrairmos da essência social do ser humano (mantendo, no entanto, presente o seu carácter essencial, determinante) uma vez que se trata da reconstrução lógica do objecto de estudo, veremos que, o mecanismo de satisfação das necessidades humanas enquanto espécie, desemboca no trabalho, na produção, que se revela como esfera da essência. Só agora se pode falar propriamente da relação intrínseca entre indivíduos, só agora se revela a essência social do ser humano[25]. É no trabalho, na produção, enquanto relação humana entre o ser humano e a natureza (portanto relação que pressupõe necessariamente a sociedade) que a essência social primordialmente se configura. Vimos, no entanto, que o ser, a dimensão natural do ser humano, não desaparece totalmente na essência, permanecendo como momento suprassumido e subsumido na essência[26]. Se não for revelado o mecanismo de constituição lógica do social, o social aparece como algo místico, sem premissas, um raio em céu sereno. Por outro lado, o não reconhecimento do carácter essencial e social do trabalho, levaria, inevitavelmente a entender o social como relação extrínseca entre indivíduos.

O nível do fenómeno, enquanto manifestação sensível da essência, é o nível do social em sentido estrito, o nível da actuação social, movimentos sociais, das formas de consciência social, da superstrutura[27].

Em relação às formas de consciência social, estas têm uma mediação distinta no que concerne à sua relação com a essência. O agir, o sentir e o pensar permeiam todas as formas de consciência social, mas em distintos graus. Há formas de consciência social em que predomina (no interior da consciência) o agir (moral, política, direito), outras em que predomina o sentir (arte, religião), outras em que predomina propriamente o pensar (ciência, filosofia). Quanto mais mediadas são as formas de consciência social, mais elas dependem da anterior. Por exemplo, a arte depende mais da moral do que a moral, da arte.

O nível fenomenal corresponde ao social, num sentido estrito. O fenómeno, enquanto manifestação sensível da essência, é e não é, simultaneamente, a essência. Esta relação dual com a essência possibilita a contraposição entre fenómeno e essência, como uma relação negativa entre elas. Se não avançarmos até à efectividade, se absolutizamos os níveis da essência ou do fenómeno na sua autonomia relativa, compreendidos sem ligação ao nível do ser e ao nível da efectividade e o ser humano será entendido ora como simples ser natural, ora como ser puramente social, desligado da natureza e também da sua individualidade [28].

A efectividade da sociedade é a plena unidade e identidade entre o fenómeno e a sua essência (que pressupõe a recuperação do ser enquanto momento subsumido da essência)[29]. A sociedade aparece, neste nível, como unidade do diverso, o ser humano surge como personalidade, em que a individualidade e o carácter social estão intrinsecamente unidos, o ser humano é visto como uma individualidade social, simultaneamente singular e universal. A efectividade da sociedade humana é a relação das pessoas enquanto personalidades e as formas destas relações. O crescimento integral do ser humano enquanto personalidade passa a ser visto como o efectivo incremento do todo social [30]. Portanto, a efectividade do todo social só adquire pleno desenvolvimento na fase de maturidade social.

 

Após a exposição lógica da sociedade, e em relação intrínseca com ela, V.A. Vazyulin dedica-se à sua explanação histórica.

O estudo da sociedade enquanto totalidade orgânica deixou claro que a estrutura social também se desenvolve. Não se alteram apenas as forças produtivas e as relações sociais, dentro de uma estrutura social em si imutável, mas transforma-se e desenvolve-se toda a estrutura e a dialéctica ínsita dos seus momentos. Assim, modificam-se as relações entre base e superstrutura, entre os momentos constitutivos da base e entre os momentos constitutivos da superstrutura e entre todos estes momentos. Não se pode entender o devir histórico como um preenchimento, por conteúdos diversos, de uma grelha estrutural dada. A estrutura da sociedade burguesa é, pelo pensamento marxista predominante, extrapolada, até certo ponto, para as sociedades passadas e futura, mudando apenas o conteúdo dessa estrutura. Porém, ao longo da história, modifica-se não apenas o conteúdo, mas também a estrutura social, as categorias sociais e a sua interacção. Transformam-se não apenas o singular e o particular, mas também o geral. Mesmo as categorias sociais e a sua interacção alteram-se ao longo da história, ou seja, desenvolve-se o todo social. Por exemplo, a relação entre base e a superstrutura e a relação dos diversos elementos da superstrutura só se encontram em separação máxima no capitalismo, não antes nem depois. Em “A lógica da história”, V.A. Vazyulin procurou apresentar, em traços gerais, esta complexa dialéctica do movimento de toda a estrutura social, da sociedade enquanto totalidade orgânica.

Ao descortinar a dinâmica interna da história da humanidade, supera-se a compreensão do processo histórico enquanto simples sucessão de formações económico-sociais estruturalmente idênticas (sociedade comunal primitiva-esclavagista-feudalismo-capitalismo-comunismo), em que a estrutura apenas mudaria de conteúdo.

Ao longo da história, a humanidade passa pelas etapas de início, surgimento, formação e maturidade. O início da sociedade corresponde à fase de constituição das suas premissas sociais no seio da natureza. Esta é vista na sua relação com o social, como mecanismo de constituição do social. Existe, inicialmente, uma unidade imediata entre o ser humano, a sociedade e a natureza (uma unidade do diverso). O ser humano ainda apela predominantemente a processos naturais. Até as relações entre indivíduos, são acima de tudo, naturais. As relações de produção formam-se no interior das relações da espécie. A primeira aparição da sociedade ocorre quando a ocasional e insustentável utilização de instrumentos dados pela natureza se torna recorrente e necessária e são produzidos, de modo contínuo, os primeiros instrumentos de caça e recolecção. Predominam, todavia, os laços naturais entre os indivíduos, no seio da comunidade tribal. Estes laços naturais, biológicos não são claramente separados do tecido social. O social já surgiu, começa a ter papel determinante no progresso social, mas não dominante, uma vez que predomina ainda a sua identidade com o natural. O social ainda não penetrou na relação produtiva com a natureza.

O ponto máximo da comunidade primitiva foi atingido com a transição para a pecuária e agricultura (e artesanato). A etapa de formação da sociedade, aparece como uma negação da anterior. Aqui, o ser humano passa de mero recolector, a agente activo do processo produtivo. O trabalho, a produção de instrumentos de trabalho, a transformação da natureza pelos seres humanos vai suplantando, aos poucos, os processos recolectores. Com o surgimento da propriedade privada e das classes, o social adquire um papel dominante nas relações entre o ser humano e a natureza, dando início ao alargamento da diferenciação entre forças produtivas e relações de produção. De referir que a propriedade privada surge quando a produção se torna superior ao mínimo exigido para a sobrevivência e a reprodução dos membros da comuna primitiva.

A relação social das pessoas com a natureza e entre as pessoas não aparece de forma acabada, mas antes desenvolve-se, à medida em que os processos produtivos de uma natureza transformada pelo homem adquirem supremacia em relação aos processos naturais (é um longo percurso. Basta ver que até ao capitalismo a terra continua a ser o meio de produção por excelência. Os animais também são usados como importantes meios de produção).

As relações sociais formam-se paulatinamente, como unidade de relações sociais e naturais. As forças produtivas, as relações de produção e as relações superestruturais aparecem fundidos, praticamente indiferenciados. Esta indiferenciação do diverso mantém-se, num menor ou maior grau, durante todo o período, durante o qual, a terra, enquanto meio de produção não produzido, tem uma importância decisiva na produção e a propriedade privada não suplanta e transforma definitivamente a base herdada (os escravos e servos ainda são, em certa medida, não apenas membros das relações de produção, mas também elementos das forças produtivas, usados na produção como meios de produção). O feudalismo já é o período de afirmação da grande propriedade privada, porém, numa base não adequada. Só com o advento do capitalismo a propriedade privada se afirma como propriedade privada, por excelência, de meios de produção produzidos pelo homem.

No capitalismo o social e o natural apresentam-se contrapostos, mas mesmo aqui ainda se mantém o momento de identidade entre o social e o natural, mesmo no capitalismo a separação entre relações de produção e forças produtivas não alcança a sua completa diferenciação. Basta ver que a força de trabalho do ser humano é um meio de produção e, simultaneamente, força de trabalho de um membro de relações de produção. Além disso, o trabalho morto, convertido em matéria, domina o trabalho vivo.

A etapa de formação da humanidade é o período de domínio da propriedade privada (e corresponde, de modo geral, às formações económico-sociais esclavagista, feudal e capitalista). O capitalismo leva a propriedade privada ao seu limite extremo. Com o capitalismo, surgem, porém, as premissas de um novo tipo de sociedade. Surge a indústria e a natureza cooperativa do trabalho torna-se uma necessidade técnica, ditada pela natureza do meio de trabalho, o processo produtivo adquire um carácter cada vez mais social. Com o capitalismo, o carácter social do trabalho torna-se uma necessidade técnica do processo produtivo. No entanto, não pode atingir, o seu ponto máximo no seio das relações capitalistas de produção. Cresce a contradição entre o carácter social da produção e a sua apropriação privada [31].

As premissas da etapa de maturidade social, o comunismo, surgem no capitalismo, como resultado da mecanização da produção. Com a grande indústria mecanizada, a natureza eminentemente social do trabalho torna-se uma necessidade técnica. Surge a classe operária e elementos superestruturais que reflectem os seus interesses. Com o tempo, a produção de bens aproxima-se do nível da satisfação optimal das necessidades de sobrevivência e reprodução de toda a espécie humana, tornando, a nível de toda a humanidade, desnecessária a apropriação de sobreproduto, para efeitos de sobrevivência.

O aparecimento da futura sociedade tem lugar quando a classe trabalhadora conquista o poder político e estabelece a propriedade pública dos meios de produção (pelo menos, naqueles onde já amadureceu o carácter social do trabalho).[32]

O socialismo não pode visto como um estado, harmónica e rapidamente instituído, mas como um estádio precoce, imaturo, de uma nova sociedade em formação, estádio que apenas saiu do ventre materno e traz em si tanto os traços da sua imaturidade como os resquícios da sociedade passada. Esta nova sociedade desenvolve-se, necessariamente, através de contradições internas.

Conforme foi referido, com o surgimento da grande indústria mecanizada, a natureza cooperativa do trabalho torna-se uma necessidade técnica. Incrementa-se o carácter social da produção, que somente poderá atingir o seu ponto mais elevado na automatização a integração de toda a produção num complexo produtivo a nível planetário [33].

A contradição fundamental do socialismo, etapa de formação da sociedade comunista, é a contradição entre a propriedade social dos meios de produção e a imaturidade do carácter social da produção. Neste nível, a propriedade social realiza-se indirectamente, através do estado, ou seja, o seu carácter formal predomina sobre o seu carácter real. Nesta fase, o nível e o carácter do processo produtivo não permitem a extinção completa da produção mercantil, sendo, portanto, ainda insuficientes para superar as contradições entre o interesse privado e o social, entre a cidade e o campo, entre o trabalho físico e o trabalho intelectual. A solidez da construção socialista depende, fundamentalmente, do nível atingido pelo carácter social da produção [34]. Quanto menor for o carácter social real do trabalho do processo produtivo, maior é o papel impositivo da superestrutura, maior a probabilidade de discrepância entre a realidade socialista e o objectivo comunista e também maior a probabilidade de retrocesso histórico.

A etapa de passagem do desenvolvimento extensivo para o intensivo, durante o socialismo, corresponde ao momento em que a integração e o avanço técnico-científico começam a ser determinantes e dominantes no processo produtivo.

A não compreensão das contradições internas imanentes da construção socialista leva, inevitavelmente, à sobrevalorização do externo e do contingente (características individuais dos líderes, resoluções políticas, interferência externa, etc.).

A compreensão da restauração do capitalismo, ocorrida na passagem do século XX para o XXI, exige a clarificação da dinâmica interna da construção do socialismo. A fase das revoluções socialistas iniciais corresponde, em termos gerais, à etapa histórica em que o nível do carácter social da produção (decorrente do nível das forças produtivas) não permite o desenvolvimento numa base adequada por um longo período histórico. A fase das revoluções socialistas posteriores corresponderá a uma etapa histórica em que o nível do carácter social da produção será muito mais adequado à integração da produção, tornando a possibilidade de retrocesso social menos provável.

O comunismo é uma longa marcha, em cuja primeira etapa, socialista, a produção ainda não conta com uma base adequada. Somente com a automatização e integração de todo o complexo produtivo o comunismo pode chegar á sua fase superior.

Como vimos, o social vai, ao longo da história, penetrando e transformando os processos produtivos naturais em processos produtivos propriamente sociais. A actuação directamente ao nível da essência exige um elevadíssimo grau de preparação teórica, uma vez que o processo produtivo se transforma totalmente em algo criado e controlado pelo ser humano. A construção da sociedade comunista é caracterizada por essa complexidade [35].

A transição para o comunismo é uma negação da negação, ou seja, como que um retorno ao início histórico. A produção tende para a automatização completa, torna-se autoprodução integrada e a força de trabalho do ser humano separa-se das forças produtivas. Na fase superior, fase comunista stricto sensu, o ser humano volta a uma relação em que o processo produtivo ocorre de modo de um modo praticamente automático, como se tivesse lugar um processo “natural”.

Só com o fim da participação dos seres humanos enquanto elementos internos subordinados à produção, o processo produtivo passa a ser controlado, em vez de controlar. O trabalho deixa, então, de ser uma obrigação, um meio para garantir a sobrevivência e a actividade criativa humana torna-se um fim em si mesmo. O trabalho deixa de ser propriamente trabalho, torna-se uma actividade cultural integral de auto-crescimento pessoal e social. Concomitantemente, supera-se a anterior contradição entre trabalho físico e trabalho intelectual, base da contradição entre materialismo e idealismo.

O comunismo é o início de um novo tipo de desenvolvimento social, é, num sentido rigoroso, não o fim da história, mas o seu começo [36].

 

Marx abriu nova época em termos teóricos, mas não a fechou. O marxismo é uma teoria em desenvolvimento. Mas, para que tal ocorra, é exigido o seu conhecimento. Isto significa não um conhecimento externo da teoria, mas a assimilação do mecanismo imanente de desenvolvimento da teoria e a elucidação das suas linhas vectoras. Caso contrário, estaremos perante um vínculo externo com essa teoria[37], possibilitador, no melhor dos casos, de uma aplicação pontual dos seus resultados.

Na relação extrínseca ao marxismo, duas posições unilaterais se prefiguram: a dogmática e a revisionista. A posição dogmática procura defender os resultados da teoria cristalizando-a, matando a sua vitalidade, impedindo assim o seu desenvolvimento; já o revisionismo incapaz de desenvolver a teoria, acrescenta (e contrapõe) à teoria, numa base predominantemente empirista, novos dados e elementos teóricos, numa colagem extrínseca, ecléctica, que vai ditando o afastamento em relação à teoria. Assim, o revisionista incorpora indutiva, imediata e eclecticamente os “novos dados” e os conceitos teóricos surgidos no “mercado das ideias”, mesmo que esses conceitos sejam o mesmo caldo requentado de posições pretéritas, pré-marxistas (o entendimento abstracto de direitos e democracia, a utilização acrítica de conceitos como o de cidadania, globalização, utopia, etc.). Para o dogmático, não há nada de novo sob o sol; para o revisionista, no seu afã de movimento, tudo parece ser novidade. A absolutização de determinados momentos do marxismo clássico e a relação de exterioridade é comum às duas posições, possibilitando, por exemplo, a passagem fácil de uma posição dogmática a uma posição revisionista[38].

As posições actualmente predominantes no que diz respeito à crítica ao capitalismo reflectem o nível teórico das mesmas. Muitos consideram que basta criticar o neoliberalismo. Esta posição ainda se move no interior do paradigma burguês. Mas mesmo entres aqueles que criticam o capitalismo, muitos consideram que basta conhecer as mazelas provocadas pelo capitalismo. Porém, neste caso, a crítica é incompleta e fundamentalmente de ordem moral, ou seja, padece de idealismo. A crítica à base económica torna-se uma crítica político-moral, em que a essência da sociedade é vista apenas negativamente, como alvo para ataques políticos, não é vista na sua real existência, os seus mecanismos e a sua dinâmica não se tornam matéria de apropriação teórica integral. Se a transformação da sociedade for vista apenas como resultado da luta política, esta ficará, inevitavelmente presa ao voluntarismo e a aspectos conjunturais da realidade. Em relação aos marxistas, na sua maioria limitam-se, sobretudo, à crítica ao capitalismo e às posições burguesas (crítica extremamente necessária mas insuficiente). Para uma crítica eficaz ao capitalismo é necessário perspectivar o comunismo e inserir essa crítica na crítica de toda a pré-história. Se o comunismo for visto como negação do capitalismo, a contradição histórica será vista sob o prisma da sua negatividade imediata. O desenvolvimento efectivo e integral do marxismo exige que se veja o comunismo enquanto tarefa positiva, de construção de um tipo novo de sociedade e não apenas de passagem de uma formação a outra e de negação da formação imediatamente anterior. Só esta perspectiva permite desenvolver o marxismo pela sua linha magistral [39].

 

Vivemos numa época de recuo histórico, marcado pelo fim da União soviética e a restauração do capitalismo nos países socialistas. Esta restauração representa um enorme retrocesso civilizacional, embora, numa perspectiva mais ampla esteja inserida num movimento histórico progressivo, de avanço da humanidade para o comunismo. Relacionar teoricamente estes movimentos aparentemente contraditórios, exige a compreensão de toda a lógica da história. Exige também, enquanto tarefa inclusa na anterior, o aprofundamento da teoria do imperialismo [40]. A compreensão lógica do imperialismo não pode circunscrever-se ao apontar de características inerentes à manifestação da essência do capitalismo (exploração, desemprego, crises, dominação económico-social de nações inteiras, etc.) nem à crítica politica do imperialismo. Além disso, não termina na apresentação de características do imperialismo. Consiste, sim, em revelar, pela elucidação lógica e histórica, a dinâmica interna do imperialismo.

Todo o ataque actual às conquistas sociais tem uma relação directa com o fim da União Soviética enquanto vitória contra-revolucionária sobre o futuro. A União Soviética não era só um estado que se contrapunha ao domínio imperialista, mas um avanço efectivo na superação da pré-história da humanidade [41]. Mas o temporário “vencedor” tem pés de barro e não pode vencer as suas próprias contradições. O tempo em que vivemos não é um regresso ao passado pré-soviético. É uma época que não se assemelha inteiramente ao início do século XX. É, sim, uma fase em que o capitalismo expande, definitivamente, de modo extensivo e intensivo, toda a sua potencialidade histórica, atingindo o limite último, para além do qual perante a humanidade não restará alternativa que não seja a sua superação.

Assim que o capitalismo se viu relativa e temporariamente livre do embate contra o futuro, os seus olhos voltaram-se para a sua expansão estratégica e para um ajustar de contas com o seu passado. Ásia, África, América Latina, por todo o planeta as relações não-típicamente capitalistas, criadas e reproduzidas, em parte, pelo mesmo capitalismo, são forçadas a transformar-se em relações capitalistas padrão [42]. Em grande parte esta contradição imprime o seu carácter à luta anti-imperialisa. Claro que esta luta contra o imperialismo não deixa de ter, em si, momentos de passado e futuro, a luta anti-imperialista na Ásia e não só, une elementos de defesa de relações pré-capitalistas, capitalistas e socialistas, numa amálgama que o tempo acabará por decompor. A luta imperialista em todo o mundo, nomeadamente na América Latina, realiza, em grande parte, tarefas mais anti-imperialistas do que socialistas. Mantém, no entanto, o fio (e o fito) condutor revolucionário, necessário para a tomada futura de posições mais consequentes [43].

Como foi dito no início deste artigo, nunca na história uma nova formação económico-social se estabeleceu sem recuos temporários e esta verdade ainda mais fundamental é para uma formação que pretende não apenas superar a anterior formação mas toda a pré-história da humanidade. É inevitável que a uma fase inicial de revoluções socialistas se siga uma nova fase de revoluções socialistas, com muito mais possibilidades de êxito, uma vez que o carácter social da produção se encontrará num patamar muito mais adequado à construção do comunismo. O período soviético não é algo do passado, mas do futuro. Não é apenas uma tentativa falhada, mas a primeira, a mais heróica das tentativas [44], que deve ser estudada se quisermos iluminar teoricamente o futuro a construir.

Efectivamente, a história não é a avenida Nevsky. Numa comparação geograficamente mais contígua, poderia ser afirmado que a história não é como a Avenida da Liberdade, embora ela seja a autêntica avenida da liberdade da humanidade.

  

 

Luís Rafael Gomes

  

 

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[1] Tchernichevsky utilizou esta comparação, que Lenin gostava de repetir, no artigo sobre o livro de G. Care “ cartas económico-políticas ao presidente dos EUA” (1861). Utilizou-a num sentido ligeiramente diferente do aqui utilizado, uma vez que se referia às dificuldades da actividade política decorrentes da complexidade do movimento histórico (Tchernichevsky, obras completas, tomo т. VII, Moscovo, 1950, em russo). Esta expressão aparece pela primeira vez em Herzen, no prefácio do livro «Sobre a degradação dos costumes na Rússia» (А. I. Hertzen, obras escolhidas, tomo 13, Moscovo, 1958, em russo).

[2] O termo “orgânico” é um termo recorrente na literatura marxista, que não pode ser visto como indício de qualquer reducionismo biologizante organicista ou funcionalista (O. Spengler, R Worms, A. Toynbee, P. Sorokine, B. Malinowski, A. R. Radcliffe-Brown, etc). Aqui, “Totalidade orgânica” refere-se a uma totalidade dialéctica concreta, em desenvolvimento por contradições internas.

[3] Lenine, Obras escolhidas em seis tomos, Ed. Avante, Lisboa, 1989, pág. 164.

[4] Não é objectivo deste trabalho a abordagem concreta directa do processo de transformações revolucionárias, embora esta temática seja deveras importante. Também não é propósito deste trabalho o estudo sistemático dos avanços materiais e teóricos na União Soviética.

[5] Ver http://www.marxists.org/portugues/marx/1859/contcriteconpoli/introducao.htm#textmet.

[6] Em Hegel, a ascensão do abstracto ao concreto é minuciosamente descrita (embora sem esta designação). No entanto, na filosofia hegeliana ainda predominava o movimento inverso, o que levou a uma identificação entre o método de investigação e o método de exposição.

[7] Importa referir que uma das contribuições teóricas de Hegel foi o considerar o pensamento não apenas como pura faculdade subjectiva (mesmo que entendida universalmente, como em Kant) mas principalmente como um processo objectivo histórico-natural.

[8] Ver http://www.marxists.org/portugues/marx/1873/01/24.htm.

[9] Um exemplo da superficialidade com que Hegel é criticado, pode encontrar-se na constante referência `a afirmação de que “Was vernünftig ist, das ist wirklich; und was wirklich ist, das ist vernünftig”. Ora, nesta afirmação Hegel não se refere à Realität mas à Wirklichkeit (Efectividade). Para Hegel, nem todos os aspectos da realidade são efectivos. A ordem anterior à revolução francesa ainda tinha realidade, mas não efectividade. Além disso, o conceito vernünft tem um sentido próprio na semântica hegeliana, contrapondo-se, dialecticamente, a Verstand.

[10] Fora da União Soviética, os estudos da metodologia de “O Capital” (R. Rosdolski, J. Zelený, etc.) não chegaram, pese o interesse delas, a tratar “O Capital” enquanto totalidade orgânica.

[11] Vazyulin, Viktor Alekseevitch (n. 1932 - Moscovo) formou-se em filosofia pela Universidade Estatal de Moscovo (1955) com uma dissertação sobre o "Desenvolvimento da lógica histórica e questões económicos nos escritos de Karl Marx e Engels nos anos 50-60 do século XIX ". Concluiu o doutoramento em 1962, com uma defesa de tese acerca do "O sistema de categorias da lógica dialéctica de “O Capital” de Karl Marx" (1972). Trabalhou, desde 1962 na Faculdade de filosofia da Universidade Estatal de Moscovo.

[12] Do mesmo modo, uma descoberta científica só adquire o seu real significado quando integrada num sistema teórico compatível. David Ricardo distinguiu o trabalho como substância do valor. Mas apenas Marx foi capaz de integrar esta descoberta num sistema teórico compatível e consequente, o que levou à descoberta da mais-valia.

[13] Sein, wesen, erscheinung, wirklichkeit.

[14] Só no terceiro livro de “O Capital”, livro, recordamos, incompleto, Marx chegaria à efectividade, à concretude do real enquanto totalidade, “síntese de múltiplas determinações”.

[15] Mesmo no movimento do concreto sensível ao abstracto, há o momento inverso, uma vez que o investigador necessita de reconstruir permanentemente a sua visão de totalidade. Aliás, a interacção destes dois movimentos é fundamental para o avanço em direcção ao abstracto.

[16] Um dos aspectos da genialidade hegeliana e da sua enorme intuição, é o facto dele apresentar, a contrapelo do seu idealismo, a esfera do ser como o verdadeiro início desta ascensão.

[17] Que, por sua vez, tem o seu próprio ser, essência, fenómeno e efectividade.

[18] Em Hegel encontramos elementos historicistas e não historicistas, numa interacção complexa e contraditória. O que é aqui referido, refere uma característica predominante na lógica hegeliana, não podendo servir de aval às posições que absolutizam unilateralmente o “presentismo” e “conservadorismo” hegelianos.

[19] É de assinalar a carta de Marx a Engels de 29 de Novembro de 1858, em que este refere “minha mulher está copiando de novo o manuscrito, que não poderá sair antes do final do mês. As razões deste atraso são: grandes períodos de indisposição física, situação que não terminou agora com o Inverno. Demasiados problemas domésticos e económicos. Finalmente: a primeira parte resultou mais importante porque, dos dois primeiros capítulos, o primeiro (A MERCADORIA) não estava redigido em absoluto no projecto inicial, e o segundo (O DINHEIRO, OU A CIRCULAÇÃO SIMPLES) não estava escrito senão esquematicamente, e depois foram tratados com mais detalhes que eu pensava a princípio... (Marx, K. e Engels, F., Cartas sobre “El Capital”, Editora Politica, La Habana, 1983, p. 106). João António de Paula afirma: “Pela correspondência de Marx, é possível (...) identificar o momento em que a estrutura expositiva da crítica da economia política adquire seu formato definitivo. Esse momento situou-se entre 2 de Abril de 1858, quando Marx, em carta a Engels, ainda continua considerando o ponto de partida de sua obra como o Valor, e 29 de Novembro de 1858, quando a mercadoria aparece como categoria inicial da exposição.” Ver  http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-63512007000200004&script=sci_arttext.

[20] Para Lukács, a categoria inicial de “O Capital”, como ‘elemento primário’, é o valor (in Lukács, G. Ontologia do ser social. Os princípios ontológicos fundamentais de Marx, Lech, São Paulo, 1979, p.46).

[21] Apesar do carácter abstracto, escolástico e, num sentido rigoroso, não inteiramente marxista destes manuais, eles situam-se, apesar de levianamente ridicularizados no ocidente, anos-luz à frente da maioria dos trabalhos de autores ocidentais sobre as mesmas temáticas.

[22] Tendo por base a obra V.A. Vazyulin, foi criada a escola internacional lógico-histórica, que tem produzido trabalhos em várias áreas (ver http://www.ilhs.tuc.gr/).

[23] Quando na ordem do dia a questão política essencial é a luta contra o capitalismo, é compreensível que o comunismo seja visto como negação do capitalismo. Quando se inicia a construção da nova sociedade, torna-se necessário encará-la positivamente, como negação da pré-história.

[24] Se não avançarmos do ser à essência, a sociedade será vista como mero conjunto de indivíduos, unidos numa relação extrínseca, do mesmo modo que a produção capitalista será vista como mera acumulação de mercadorias.

[25] Nos animais, as características gerais são características naturais, da espécie, e os traços individuais decorrentes da constituição biológica específica do animal e da relação natural com o mundo ao longo das experiências de vida, condicionamentos, etc. Neste sentido, o geral e o individual, decorrem, ambos, sob a mesma dimensão natural.

[26] A interpretação da famosa caracterização marxiniana da essência humana enquanto “conjunto das relações sociais” deverá levar em conta que: as “teses sobre Feuerbach” foram escritas por Marx em 1845, antes de Marx distinguir a esfera da produção enquanto esfera essencial; Marx nesta tese refere-se à efectividade e não à essência em si (“In seiner Wirklichkeit ist es das ensemble der gesellschaftlichen Verhältnisse”). A compreensão do método marxiano permite superar uma interpretação reducionista sociologizante.

[27] Uma vez que a essência não tem um carácter sensível imediato, só pela apreensão teórica da essência é possível desvelar o carácter social da produção.

[28] Embora o reducionismo sociologizante, sublinhando a essência social do ser humano, tenha, na sociedade burguesa actual, um “papel” mais positivo do que a absolutização da individualidade.

[29] Num determinado sentido, a essência compreende em si o fenómeno e a própria efectividade. O fenómeno e a efectividade, assim como os seus diversos elementos, são momentos da própria articulação dialéctica da essência. Assim, por exemplo, o fetichismo da mercadoria não pode ser entendido como mera ilusão subjectiva, mas como aparência objectiva da essência.

[30] Hannah Arendt, como muitos outros, que tentam indagar sobre a essência humana sem proceder a um estudo sistemático do nível essencial da sociedade, o nível da produção, cai numa identificação da esfera do fenomenal com o da essência (que não foi apreendida), enquanto o nível da essência, o nível da produção, é visto em mera, e errónea, contraposição estática ao social fenomenal, como não social, não sendo sequer investigada a sua natureza ontologicamente social e a passagem da essência, enquanto processo, ao fenómeno (e à efectividade). Podemos afirmar que Hannah Arendt se move entre o ser e o fenómeno, sem chegar à essência tomando o fenómeno como essência e a essência como fenómeno, sem alcançar a efectividade.

[31] Embora seja verdade que esta contradição se acirre cada vez mais, o crescente carácter social da produção, assim como as tendências ao nível da composição orgânica do capital e da taxa de lucro, não conduzem, automaticamente ao fim do capitalismo, sendo infrutíferos os sonhos sobre a passagem automática do “supercapitalismo” a um patamar social superior.

[32] A nacionalização imediata é obrigatória nos sectores chave, nos sectores determinantes, nomeadamente na indústria pesada, onde o carácter social da produção atingiu um nível apropriado.

[33] Nos movimentos anti-globalização, assim como nos movimentos ecologistas, predomina uma identificação do desenvolvimento capitalista das forças produtivas e do desenvolvimento do processo produtivo em geral. Mas ao negar, de forma geral e abstracta o processo de desenvolvimento das forças produtivas, do processo produtivo e do processo de integração produtiva mundial, nega-se, simultaneamente a possibilidade do comunismo.

[34] Claro que outros elementos também influenciam a solidez da construção socialista, aqui é referido o elemento chave do processo.

[35] No interessante livro de R. Keeran e Th. Kenny, “O socialismo traído”, é apresentada uma analogia comparativa entre a ao mera “administração” do capitalismo e a construção do socialismo. Seria a mesma diferença entre manobrar um barco pelas águas de um rio e a condução de um avião. Efectivamente, no socialismo, a humanidade passa da actuação ao nível superficial do desenvolvimento social, para a actuação consciente ao nível da própria essência deste processo. Poderia, até certo ponto, ser feita uma comparação com a diferença entre reprodução de espécies ou o mero cruzamento de raças e a engenharia genética. Ver R. Keeran e Th. Kenny, O socialismo traído, edições Avante, Lisboa, 2008.

[36] F. Fukuyama, no seu célebre artigo, demonstrou não entender minimamente a visão marxiana e marxista do comunismo.

[37] Os trabalhos de A. Negri são exemplo de uma crítica ao capitalismo, levada a cabo num patamar teórico-metodológico inferior e anterior ao do marxismo clássico.

[38] A passagem de uma posição revisionista a uma posição dogmática também é possível, embora menos frequente, uma vez que o revisionista se afasta da teoria e deixa de ter uma relação de contacto com a mesma. Além disso, o dogmático subjectivamente assume uma posição de fidelidade à teoria, ao passo que o revisionista menospreza a teoria da qual partiu.

[39] Evidentemente, é possível falar de contribuições pontuais para o desenvolvimento do marxismo, mas aqui é referido o desenvolvimento integral e efectivo do marxismo enquanto teoria.

[40] V.A. Vazyulin chama a atenção para o facto de Lenin ter consciência da necessidade de um estudo mais profundo e mais desenvolvido do imperialismo. Não sem razão, Lenin denominou, e não por razões de falsa modéstia, o seu genial trabalho “O imperialismo, fase superior do capitalismo” de “ensaio popular”.

[41] As crítica mesquinhas à União Soviética, fazem recordar o dito oriental segundo o qual quando um elefante cai, até os ratos lhe dão pontapés.

[42] A ambiguidade da luta contra o terrorismo e conciliação entre imperialismo e “terrorismo” é um sintoma da presença do inimigo comum.

[43] A defesa dos avanços na América latina é um dos actuais eixos do espírito revolucionário a nível mundial.

[44] A comuna de Paris pode, num certo sentido ser entendida como a primeira tentativa de uma “tomada dos céus de assalto”. Porém, não teve a duração, nem a dimensão, nem realizou as tarefas históricas levadas a cabo pela revolução soviética.